Índios de Mato Grosso se tornam produtores de soja

Cultivo feito em sistema cooperativo pode render R$ 6 milhões por ano. Indígenas dizem que a agricultura trouxe qualidade de vida à aldeia

Foto: Pedro Silvestre/ Canal Rural

A safra 2018/2019 entrou para a história da aldeia Bacaval, em Sapezal (MT), onde moram 3.000 índios das etnias pareci, manoki e nambikwara. Há 15 anos, eles produziam soja em parceria com agricultores da região, mas, com o fim do contrato autorizado pela Justiça, vão assumir o controle total das lavouras nesta temporada, formando uma cooperativa. O modelo é considerado pioneiro no estado e pode garantir renda anual de R$ 6 milhões.

O gerente técnico do grupo, Arnaldo Zunizakaê, destaca a competência dos trabalhadores. “Fomos preparados para isso. Investimos em capacitação. Não resta dúvida de que o trabalho está sendo bem feito, e vai produzir com a mesma qualidade de antes”, diz.

Enquanto os índios não conseguem acessar linhas de crédito, dois parceiros vão continuar dando suporte, financiando as aplicações e fornecimento de insumos. “A gente fez um termo de comodato. Eles nos repassam e pagamos em produção. É baixo custo, o mesmo que eles pagaram no mercado. Não cobram nada além disso”, conta o presidente da cooperativa, Ronaldo Zokezomaiake.

De 1,5 milhão de hectares ocupados pelos nativos, cerca de 17,5 mil costumam ser utilizados para o plantio de soja. Neste ano, a área será um pouco menor: 12 mil hectares, separados em quatro unidades. O plantio é feito inteiramente com cultivares convencionais, ou seja, sem ser geneticamente modificadas, e protegidas por defensivos biológicos.

O técnico garante que os índios atuam para preservar os recursos naturais e as áreas consideradas sagradas por eles. “Todo esse cuidado foi tomado. Está no nosso plano de gestão ambiental”, afirma.

Por dentro da produção

O trabalho de campo é idêntico ao realizado em qualquer fazenda. Segundo Zunizakaê, a aldeia conta com maquinários de qualidade e tecnologia de última geração.

O operador de tratores Moacir Parecis esbanja técnica e tranquilidade na atividade. Ele fez um curso de qualificação do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) dez anos atrás e diz estar sempre atento às novidades do mercado. “Cada ano que passa, as coisas mudam. Nós já temos trator que planta sozinho. Você tem que se aperfeiçoar, senão fica para trás”, conta.

Outro agente importante para o sucesso do projeto é Lúcio Avelino Ozanazokaese. Formado em agronomia, é dele a responsabilidade sobre as áreas agrícolas da aldeia. O jovem acompanha o plantio da safra em detalhes até a fase final. “Em 2017, fechamos entre 58 e 60 sacas (por hectare). Neste ano, a expectativa é de 60 ou 61”, diz.

Modelo para o resto do país

“Eu vejo isso aqui como uma saída para os povos indígenas no Brasil que vivem a miséria, a prostituição e o envolvimento com drogas dentro de seu território”, declara Zunizakaê.

O gerente técnico diz que eles pretendem continuar a atividade dentro da legalidade, respeitando as questões cultural e ambiental. “Vamos tornar o povo independente, principalmente economicamente. Trazendo qualidade de vida, moradia, educação, saúde e transporte”, diz.

Negócios travados

Três meses atrás toda a área de cultivo foi embargada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Procurado pela equipe do Canal Rural, o órgão alegou que o plantio impedia a regeneração de plantas nativas. Além disso, afirma ter recebido denúncia de que parte da soja utilizada seria transgênica, o que é proibido por lei em terras indígenas.

Zunizakaê diz que existe resistência por parte de alguns órgãos e ambientalistas quando se trata de produção em terras indígenas. Para ele, há certa pressão internacional para combater o desenvolvimento dos povos nativos. “Todos sabem que é derramado milhões de dinheiro para manter as unidades de terras indígenas como se fossem de preservação. Porém, esse dinheiro não chega ao território indígena”, afirma Zunizakaê.

O gerente diz que a Fundação Nacional do Índio (Funai) se mostra muito favorável ao projeto, assim como o Ministério Público. No entanto, o impasse permanece e a produção local não pode ser comercializada.

Direitos

Zokezomaiake diz que a cooperativa vai propor ao presidente da Funai a criação de uma Conferência Nacional de Agricultura para povos indígenas. “Nela, iremos expor todas as dificuldades e necessidades, como aquelas que podem ser atendidas pelo Estado. Todos os fatores que, hoje, são entraves”, conta.

O líder da cooperativa conta com o apoio do próximo presidente da República e dos parlamentares eleitos. “Falar que o índio é preguiçoso e que quer um monte de terra é fácil, o difícil é dar condições a ele”, enfatiza.